O sol acordou, ainda preguiçoso como em todos os finais do inverno e primeiros rasgos de primavera. Iluminou o dia e afugentou frios e medos que as madrugadas acoitam. O rádio dá novas/velhas notícias duma Europa perdida e de um Portugal sufocado pelo garrote económico apertado sem dó nem piedade por quem manobra a economia a seu favor cá dentro mas também a milhares de quilómetros mais a norte. As notícias de um país em ruínas vêm no éter e vão-se esparramando nas nossas vidas.
Por entre urbanos sons matinais, o pensamento voa-me para a minha infância, na escola primária, com a mala às costas para aprender o futuro, numa sala fria, hostil em todos os invernos. Pensei na professora Helena, todos os dias má e todos os dias temível para alguns alunos. Havia os alunos de 'primeira' e os de 'segunda', mesmo se isso não tinha nada a ver com a classe frequentada. Os de 'primeira', normalmente de famílias mais facilitadas de vida, eram poupados à pancada e elogiados; ocupavam as primeiras filas. Os outros, os de 'segunda', nas últimas filas, eram sempre candidatos naturais à ponteirada e reguada; estavam, paradoxalmente, sempre na linha da frente, mas apenas para o castigo, houvesse ou não motivo de maior. O recreio era a libertação, tal como as segundas-feiras, quando a camioneta das onze, que trazia a dona Helena, se atrasava e nos dava mais uma hora de bónus de alegria.
Hoje de manhã, quando Deus nos visitou no sol, lembrei-me que Ele nasceu para todos mas lembrei-me também que a vida, no meio dos homens, é normalmente aprendida à bruta. A rudeza dos dias, mesmo os de sol, castiga sempre os mais frágeis, os que pouco ou nada têm, nem mesmo uma simples escapatória. Este (des)governo, faz quase o papel da dona Helena: marginaliza, açoita, despreza, castiga e fere ostensivamente. Distribui reguadas e ponteiradas aos que põe nas últimas filas. Em Portugal, a não ser que tenhamos vontade e determinação para isso, as coisas dificilmente vão mudar para quem está nas últimas filas... Restam-nos os pequenos recreios da história, quando ela se lembra de nós, por entre dias e tempos feitos de invernias duras para quem foi condenado às zonas de sombra em Portugal, a quem o sol, quando chega, já está no seu declinar. Tirando isso, alegram-nos os atrasos da 'camioneta' da História quando esta se decide dar um bónus a quem normalmente só é autorizado a vê-la passar...
Jacinto Lourenço