terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A História também se Constrói...



O melhor que Portugal tem é o seu povo. O pior que o Portugal de hoje  tem é a apatia e o amorfismo do seu povo quando confrontado com a realidade e a necessidade de mudança e reacção face ao que o atinge. 

Há coisas significativas na análise básica do perfil das gerações que numa determinada baliza temporal enforma a identidade de um povo e a sua idiossincrasia. O povo que somos hoje, não tem a mesma marca identitária do povo que fomos ontem. As gerações cruzam-se, sucedem-se, interligam-se nos antípodas das suas vivências. São influenciadas por factores diversos, endógenos ou exógenos e, mais do que as semelhanças,  sublinham-lhe  as diferenças. Olhar para as gerações que conviveram há cem anos atrás, por exemplo,  neste pedaço geográfico do extremo ocidental da europa  e pretender compará-las com as gerações actuais só  redundará em erro grosseiro se não forem  salvaguardados  todos os necessários  distanciamentos.

Olhando para a história de Portugal, é fácil confirmar que as gerações contemporâneas se tornaram acomodadas e indolentes  face ao seu presente e mais ainda face ao seu futuro, que é também o de Portugal.

Somos herdeiros recentes de uma ditadura fascista que durou quase 48 anos e que marcou significativamente a nossa memória colectiva desde 1926. O Estado Novo decidia o que as pessoas podiam ou não fazer, onde podiam ou não estar e que futuro podia ser o de cada um certo e seguro de que isso  seria sempre diferente e determinante em função do local de nascimento e das condições sócio-económicas  em que cada família se movesse. Isto é: se alguém nascia em Trás-os-montes ou no alentejo profundo, o mais provável é que vivesse agarrado à terra e à agricultura pelo resto dos seus dias, e mesmo que se pretendesse mudar de vida, melhorar, sair do círculo vicioso da pobreza e sub-desenvolvimento sócio-económico, o estado tudo fazia para impedir que isso acontecesse implementando políticas migratórias restritivas querendo com isso mostrar e sublinhar o lugar que estava destinado a cada ser nascido português. Nas cidades, a dificuldade de acesso das classes pobres à educação não permitia facilmente a saída da  trama social  que o estado e as classes ricas iam  tecendo no sentido de dificultar a mobilidade ascensional dos mais desfavorecidos. Para as classes pobres, fazer a 4ª classe da instrução primária já era uma conquista, fosse na cidade ou no campo, e isso só mudou um pouco com o tímido desenvolvimento industrial das décadas de 1950/60 e com o aparecimento das escolas industriais e comercias para onde eram canalizados os filhos das classes operárias e rurais que podiam suportar o sacrifício de manter um filho a estudar até mais tarde. Universidade era coisa para gente rica e privilegiada ou que gravitava as esferas do poder nas suas diversas vertentes.

E foi assim até à madrugada de 25 de Abril de 1974.  A revolução não foi feita pelo povo, pese embora este  tivesse todas as razões para a fazer, mas pelos militares que estavam cansados de uma guerra colonial sem solução possível que não fosse a da auto-determinação dos territórios africanos ocupados. O povo assistiu, apoiou e saiu à rua a festejar o fim da ditadura. Desde então muita coisa mudou, mas não a vontade manifesta de um povo, acomodado, em  dizer basta à situação em que tem vindo  a ser colocado pelas políticas partidárias dos partidos do designado arco do poder e por um conjunto de políticos profissionais que nada mais fazem do que aplicar as medidas que o capitalismo internacional lhe exige. E estas, como é bom de ver, recaem basicamente sobre as classes médias e os trabalhadores em geral.
                
O povo vota e elege e, quando vota e elege, estabelece como que um pacto com os partidos políticos no sentido de estes aplicarem as medidas que prometeram ou, inversamente, de não aplicarem medidas lesivas dos interesses da nação. Facto é que assim que se instalam no poder, as políticas e os políticos vão em sentido oposto ao do pacto celebrado com o povo que neles votou. Ou seja: passam a governar em nome de outros interesses que não os de Portugal e dos portugueses. Ora nada mais que isto é o que (des)governo actual tem estado apostado em fazer agradando assim aos banqueiros alemães e aos fundos disto e daquilo que um dia, mais tarde, lhes darão emprego bem remunerado. Os portugueses deixaram de contar e pouco importa se lhes agrada ou não o que a (des)governação faz. Passos e Portas só têm olhos para os mercados... O povo português é apenas um acessório aborrecido no meio deste processo de submissão ao capitalismo selvagem.  Perante esta ilegalidade governativa e constitucional não tem o povo o direito de dizer basta, de se indignar, de fazer uma revolução ética e moral, de chamar  à responsabilidade efectiva quem já perdeu o direito legal e moral de o governar !!?                                                                                                                                        
A história de Portugal tem poucos registos que assinalem momentos em que o povo tenha decidido conduzir o seu próprio destino. Normalmente entregou essa responsabilidade a supostos "representantes"  que, na primeira oportunidade, traem todas as expectativas que criaram de uma governação virada para os verdadeiros interesses da nação. Andamos há quase quarenta anos neste círculo vicioso de, literalmente,  "entregar o ouro ao bandido", esperando sempre que alguém venha, providencialmente, qual D. Sebastião, resolver os nossos problemas. Depois, bem, depois lá estaremos para bater palmas ao cortejo da nobreza... Somos portugueses dum tempo geracional que, pelos vistos, é incapaz de enfrentar os seus próprios medos e desafios. E há sempre alguém, algum partido político, algum carreirista da política, dispostos a aproveitarem essa fragilidade inscrita nos nossos genes, essa incapacidade de não sermos capazes de estar à altura da história ancestral de Portugal. 

Todos os dias o (des)governo em Portugal elege, como  alvo preferencial das suas medidas, ditas de "ajustamento", o povo trabalhador, a classe média, os pensionistas, os funcionários públicos. Todos os dias há uma novidade que nos tira mais qualquer coisa, que nos faz regredir social e economicamente. Todos os dias sentimos que a injustiça é gritante por vermos a destruição de um país que queríamos construir e que construímos um pouco mais justo depois de 25 de Abril de 1974. Educação, saúde e direitos no trabalho são apenas três dos mais relevantes sectores onde Portugal se tornou  muito mais equitativo e até, em muitos casos, exemplar na europa,  e contra os quais o (des)governo actual em Portugal mais investe em destruição. A mando da Troica e por vontade própria, este (des)governo  ultra-liberal  acelera a sua sanha destruidora e procura fazer-nos regredir ao tempo do Estado Novo através de um veloz  empobrecimento das classes trabalhadoras e dos mais desfavorecidos bem como da delapidação do que resta do aparelho produtivo do país. As forças policiais voltaram a bater indiscriminada e despudoradamente, excepto neles próprios quando pisam os limites da lei, como se viu em S.Bento,  e os ministros a apoiar a sua acção. A  economia e o emprego, dizem-nos, estão a crescer: noticiam-se cento e vinte mil novos empregos esquecendo-se os cento e vinte mil portugueses que tiveram que sair do país para poderem trabalhar... Não sendo economistas sabemos no entanto que quando não se pode afundar mais, só há um caminho: para cima. Mas Passos e Portas insistem em dizer que crescemos sem contabilizarem o que entretanto havíamos decrescido...  A  governação, de democrática,  já nem o formalismo  possui.  O (des)governo engana, mente, destrói, (des)governa, omite e comporta-se como autêntico "sniper" a quem é difícil fugir; quando damos conta, estamos abatidos... O presidente da república, aprova, hipócrita e cinicamente este estilo de governação de vão de escada; ficará para a história, de certeza, como um dos piores presidentes da república portuguesa em democracia formal. A europa, necessitada, como de pão para a boca,  de um "caso de sucesso", manda os seus paladinos apregoar que Portugal é o "sucesso" que foi produzido pelas políticas criminosas de Merkel, Barroso e apaniguados da banca e finança internacional; pelo caminho premeiam Gaspar e Arnaut  pelos bons serviços que prestaram à alta finança... Outros receberão os seus respectivos prémios. Por muito menos do que isto foi Miguel de Vasconcelos defenestrado...

Na década de 60 do século passado, os trabalhadores do alentejo, jornaleiros e assalariados, explorados e agredidos, física e psicologicamente, pelos grandes latifundiários, com a cobertura, não necessariamente tácita, do governo de então e das designadas "forças da ordem",  levantaram-se em luta pelo fim da cruel jornada laboral de sol a sol e pela fixação das oito horas de trabalho diário. Foram barbaramente perseguidos, espancados, torturados e alguns mortos pelas forças policiais ao serviço  de um governo que nunca teve legitimidade para o ser. Resistiram estoicamente, sózinhos, de forma razoavelmente pacífica, mas não passiva. Alcançaram os seus objectivos.

Depois da liberdade de Abril e pela primeira vez, na história dos últimos 40 anos ditos de democracia, um governo em Portugal faz tábua rasa de uma conquista que resultou da força e do querer, da luta e do sacrifício de um povo  pelo direito e pela  justiça. Significativo e elucidativo.

Ao contrário de gerações anteriores, há hoje uma geração de portugueses, que prefere a apatia e o amorfismo, e que, porventura, acha normal que continuem a rir-se de Portugal e dos portugueses que após 40 anos  de democracia continuam a aspirar a  um país mais justo, social, material, ética e moralmente.

Olhamos para a Islândia e vimos como os islandeses lidaram com políticos corruptos, iguais aos de cá, e de como, apesar de serem apenas cerca de três milhões e de não terem grandes recursos nem uma  história comparável à portuguesa, se ergueram em vontade e união para dizerem que em sua casa eram eles que mandavam e não a alta finança, a europa ou o FMI. 

Cada povo é responsável pela sua história e em todos os momentos essa história exige que a saibamos construir e estar  à altura dos que nos antecederam e de sermos referência para os que nos sucederem. É isso pesa sobre cada português de hoje. À mesa do café as discussões podem ser muito interessantes, mas não é lá que se conquista o presente e muito menos o futuro de um povo. Infelizmente, e até prova em contrário, as actuais gerações de portugueses acham que sim...

Jacinto Lourenço